A tempestade se aproxima e nela, o torpor da nuvem negra que nos
embala, cegos. Não dá pra saber o quanto ela vai durar e nessa impermanência,
engulo os gritos de socorro. Faço parte dessa massa de vento que me embola
agora. Que me leva agora.
Como tudo passa muito veloz, vejo a rua - feito riscos rápidos em
traços de grafite transparente. Sei que meu rosto se contorce numa tentativa de
vencer o tempo. Com esforço e passos lentos, se arrastam no chão pesado, um
corpo.
Vejo de fora - no que parece uma janela, o corpo que está dentro - e de dentro, nada vejo fora. Como se dividido
o espaço e a paisagem que não muda a olhos vistos porque é torpor e agonia. Como
se estivéssemos cindidos eu e eu.
O calor não pode ser aplacado pela fúria do vento, que é tanto quanto
quente e sôfrego, até que desmaio.
Silêncio
Acordo, rouco.
Tudo parece um sonho descabido. Estou sentado agora numa varanda, apoiado
no umbral diante do jardim. Nada mais é seco e árido, além de mim.
Levanto-me em direção às flores, algumas delas doces, outras acres –
me salivam. Tenho vontade de comer flores, tenho vontade de pisar na grama e me
sentir livre.
Piso.
A imagem daquela mulher. Aquela mulher que me disse coisas. Não se
pode dizer coisas que não devam ser ditas. Quanta verdade escondida desvelada
agora. Eu e você – nua - sentada com dentes brancos emoldurados por carmim perverso.
Você me cuspiu palavras frias, mas não se importou com elas. É preciso que me
liberte o caminho, mas você se dissipa.
- Homem frouxo. Ria.
- Um homem não pode ser frouxo - era o que meu pai dizia.
Coisas que se contradizem na mesma intensidade me confundem. Duas
partes que devoto. Partes antagônicas do meu ser se digladiam. Mas a angústia é
o que me faz vencer o medo.
Aquela mulher, que me fez jurar vencer o medo. Aquela mulher, de quem eu
dizia - nunca me disse amor.
Adormeço.
Cavo a terra molhada e espalho sementes amarelas e rugosas. Espero o
tempo da colheita e as rego. No jardim com flores fartas, me ocupo das minhas
próprias flores. Paro e espero. Temo o vento e o desespero, mas não posso me
antecipar a elas. Esqueço até que ganhem vida própria. Até que não sejam mais minhas
ou não as reconheça.
Tenho minhas manias.
Todos os dias escrevo poesia. Escrevo e rasgo o papel em mil
pedacinhos. É preciso garantir que ninguém as leia. Enquanto rasgo, leio. Até
que fica impossível saber o que estava escrito e eu me lembro de apenas algumas
palavras, embora não perca o sentido. Elas me escapam e eu deixo. Preciso que
minhas palavras sejam elas mesmas. Quando escrevo, determino nesse encontro possibilidades
de leitura, mas não creio tanto que sejam infinitas. A linguagem que guarda o
outro, também me ilustra - e não espero ganhar uma caricatura. Talvez ousasse
deixar explícita, a formar muitas figuras que são as partes que me arranjam,
alinhadas ou não. Uma só não daria conta de me revelar à altura.
Passei a plantar meus poemas, em pedaços também, como sementes. A
ideia de minhas palavras se tornarem orgânicas me faz pensar que elas possam se
tornar flores, que elas possam ganhar cores e nomes - que não o meu.
Escolho aleatoriamente espaços e cavo buracos, sem sinalizar. Planto
minhas palavras secretas num jardim, para que elas possam nascer libertas.
Atravesso.
A rua que se avizinha é quase um desenho de uma rua com casinhas.
Daqueles desenhos tolos e juvenis quando se quer mostrar simplesmente uma rua.
Não conheço seus moradores. Eles vivem em suas casas e às vezes aparecem na
janela, mas nunca me disseram bom dia. Poucas casas têm jardim e no lugar, muitos
carros enfeitados. As pessoas saem de casa e entram nos carros e saem dos
carros para os lugares e de novo pra casa. Não preciso de muito esforço pra
saber - senão a ausência. Não sei se tem
crianças ou se são felizes. Penso que posso julgá-los e se o faço, os torno
mais próximos de mim. E, se são parte de
minha imaginação, passamos a co-existir.
Teve uma criança.
Ela entrou no meu jardim. Ela queria uma flor. Eu fingi que não vi.
Olhei da janela, de poucos metros, uma menina encantada com uma delas. Não era
das mais bonitas e até mesmo, parecia uma flor poesia, roxa, daquelas que
plantei um dia. Ela cheirou algumas, menos essa. Arrancou com cuidado e
resoluta, como se dela o cheiro não importasse. Arrancou uma flor e colocou na
cabeça, presa num grampo tosco que lhe guardava os cabelos claros, atrás das
orelhas, mais propriamente da esquerda. Ela ficou mais bonita.
Continuo regar o meu jardim, sem esperar que
ela volte. Continuo a plantar palavras,
pra colher flores poesia.
Chove.
Tenho dificuldades em ficar dentro de casa. Minha cama é uma pouco
velha e range. Isso fica pior quando não consigo dormir. O ruído de uma casa solitária
é ensurdecedor, tanto quanto universos super povoados. Nada pior que a indiferença, nada pior que
despersonalismo. Uma vida só é a mesma quando junta. O que dá liga é altero.
Melhor que seja um conjunto, um duo. Mas, antes altero para que se compreendam.
Minha casa tem goteiras e quando chove, só quando chove, me lembro que
devo consertar. É quando estou exposto que percebo os buracos e eles se tornam
maiores e preciso de mais cuidados. Penso que é preciso estancar quando ainda
está seco - ou se torna hemorragia. É preciso cuidar dos espaços vazios. Pra
que sejam vazios ou estanques. Tenho que cuidar da minha casa, que é também meu
abrigo.
Anoitece.
Estou novamente sentado na soleira e observo. Nesse momento, todos
parecem surgir do nada. Estão apressados. Percebo que em pouco se diferem. Não
saberia mesmo dizer quem é homem ou mulher e o que vestem. Eles se amontoam,
rápidos, amorfos.
Penso que não são pessoas de verdade, ou não poderiam ser. Não se
expressam particularmente. Como poderia diferenciá-los um dos outros - tão
iguais.
Grito: Ei, vocês.
Pouca coisa muda. Eles param todos juntos, olham juntos, olhares
iguais. Nada dizem e seguem.
A criança ressurge com a flor, dessa vez na mão. Rompe a massa e diz:
- Você está me chamando? Responde ao grito.
Eu digo que não sei.
Ela senta ao meu lado, me devolve a flor e diz: Leia. Essa é das suas.
Não vejo mais a criança. Vejo um homem, sentado, com uma flor na mão e
adormeço.